Brasília –
Fernando* estava na aula de artes e tinha acabado de terminar uma maquete sobre
as pirâmides do Egito. Conversava com os amigos quando foi expulso da sala aos
gritos de "demônio" e "filho do capeta". Não tinha desrespeitado
a professora nem deixado de fazer alguma tarefa. Seu pecado foi usar colares de
contas por debaixo do uniforme, símbolos da sua religião, o candomblé. O fato
de o menino, com então 13 anos, manifestar-se abertamente sobre sua crença
provocou a ira de uma professora de português que era evangélica. Depois do
episódio, ela proibiu Fernando de assistir às suas aulas e orientou outros
alunos para que não falassem mais com o colega. O menino, aos poucos, perdeu a
vontade de ir à escola. Naquele ano, ele reprovou e teve que mudar de colégio.
Quem conta a
história é a mãe de Fernando, Andrea Ramito, que trabalha como caixa em uma
loja. Segundo ela, o episódio modificou a personalidade do filho e deixou
marcas também na trajetória escolar. "A autoestima ficou muito baixa, ele
fez tratamento com psicólogo e queria se matar. Foi lastimável ver um filho
sendo agredido verbalmente, fisicamente, sem você poder fazer nada. Mas o maior
prejudicado foi ele que ficou muito revoltado e é assim até hoje", diz.
Antes de
levar o caso à Justiça, Andréa tentou resolver a situação ainda na escola, mas,
segundo ela, a direção foi omissa em relação ao comportamento da professora. A
mãe, então, decidiu procurar uma delegacia para registrar um boletim de
ocorrência contra a docente. O caso aguarda julgamento no Tribunal de Justiça
do Rio de Janeiro. Se for condenada, o mais provável é que a professora tenha a
pena revertida em prestação de serviços à comunidade.
Já a Fundação
de Apoio à Escola Técnica do Estado do Rio de Janeiro (Faetec), responsável
pela unidade, abriu uma sindicância administrativa para avaliar o ocorrido, mas
a investigação ainda não foi concluída. Por essa razão, a professora – que é
servidora pública – ainda faz parte do quadro da instituição, "respeitando
o amplo direito de defesa das partes envolvidas e o Estatuto dos Funcionários
Públicos do Estado do Rio de Janeiro", segundo nota enviada pelo órgão. A
assessoria não informou, entretanto, se ela está trabalhando em sala de aula.
A história do
estudante Fernando, atualmente com 16 anos, não é um fato isolado. A
pesquisadora Denise Carrera conheceu casos parecidos de intolerância religiosa
em escolas de pelo menos três estados – Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo. A
investigação será incluída em um relatório sobre educação e racismo no Brasil,
ainda em fase de finalização.
"O que a gente observou é
que a intolerância religiosa no Brasil se manifesta principalmente contra as
pessoas vinculadas às religiões de matriz africana. Dessa forma, a gente
entende que o problema está muito ligado ao desafio do enfrentamento do
racismo, já que essas religiões historicamente foram demonizadas", explica
Denise, ligada à Plataforma de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais
e Ambientais (Dhesca Brasil), que reúne movimentos e organizações da sociedade
civil.
Denise e sua
equipe visitaram escolas de Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo. Ouviram de
famílias, professores e entidades religiosas casos que vão desde humilhação até
violência física contra alunos de determinadas religiões. E, muitas vezes, o
agressor era um educador ou membro da equipe escolar.
"A gente observa um
crescimento do número de professores ligados a determinadas denominações
neopentecostais que compreendem que o seu fazer profissional deve ser um desdobramento
do seu vínculo religioso. Ou seja, ele pensa o fazer profissional como parte da
doutrinação, nessa perspectiva do proselitismo", aponta a pesquisadora.
Alunos que
são discriminados dentro da escola, por motivos religiosos, culturais ou
sociais, têm o processo de aprendizagem comprometido. "Afeta a construção
da autoestima positiva no ambiente escolar e isso mina o processo de
aprendizagem porque ele se alimenta da afetividade, da capacidade de se
reconhecer como alguém respeitado em um grupo. E, na medida em que você recebe
tantos sinais de que sua crença religiosa é negativa e só faz o mal, essa
autoafirmação fica muito difícil", acredita Denise.
Para ela, a
religião está presente na escola não só na disciplina de ensino religioso.
"Há aqueles colégios que rezam o Pai-Nosso na entrada, que param para
fazer determinados rituais, cantar músicas religiosas. Criticamos isso no nosso
relatório porque entendemos que a escola deve se constituir como um espaço
laico que respeite a liberdade religiosa, mas não que propague um determinado
credo ou constranja aqueles que não têm vínculo religioso algum", diz.
*o nome foi alterado em respeito
ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Fonte: www.geledes.org.br
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