Ângela Maria B. Bahia de Brito1
O campo estabelecido como saúde da população negra no Brasil é e tem sido uma novidade definida nas duas últimas décadas por nós mesmos, a população negra, principalmente pelos militantes do Movimento Negro e pelos profissionais de saúde, destacando-se aí as mulheres negras. Trata-se de uma operação estratégica de revelar o oculto de um campo vital para a sobrevivência de uma parcela numericamente importante da população brasileira. A criação deste conceito incorpora elementos de diversas áreas de conhecimento inter e transdisciplinar e vários condicionantes, ampliando para além da biologia e da medicina, as possibilidades de leitura da gênese dos processos de saúde – doença junto à população negra e toda a população brasileira.
Elementos tão diferentes quanto a poluição ambiental, as oportunidades de emprego e a religião fazem parte do que, em epidemiologia, chamamos de determinantes do processo saúde-doença. Quando somamos as condições de vida (condicionantes sociais) às características herdadas pelos indivíduos dos seus antepassados (condicionantes genéticos), temos um perfil particular de doenças. Assim, a particularidade desta “soma de condicionantes” determinam as doenças prevalentes na população negra brasileira.
Reconhece-se, então, a necessidade de explicar um campo específico de ação em saúde voltada para a população negra, sinalizando, também, para a área de saúde da mulher negra como viés necessário.
As doenças em mulheres negras e suas repercussões sobre saúde reprodutiva e mortalidade materna devem-se, provavelmente, a um emaranhado de condições geneticamente determinadas, que levam a hipertensão/DHEG (Doença Hipertensiva Especifica da Gravidez) como principal causa de óbitos no país, mas que também contribuem significativamente nas demais causas de óbitos maternos, sejam diretas
(infecção, aborto e outras) ou indiretas (acidente vascular cerebral, cardiopatias, diabetes, doenças renais e outras). Além disso, é necessário considerar as condições de vida e o acesso dessas mulheres à saúde. Para Berg et al.(1996) os “esforços para reduzir a mortalidade materna deveriam incluir as mulheres negras como um grupo de risco”. Raça é um conceito biológico. A aplicabilidade do conceito raça à saúde tem provocado debates tanto no campo científico quando fora dele. Sabemos da aplicabilidade da raça ou cor no que se refere à morbi-mortalidade por um variado conjunto de agravos à saúde, tanto aqueles vinculados à variabilidade genética quanto aos modos de vida. Já se encontram descritos na literatura científica de saúde, tanto no país, quanto no exterior, diferentes agravos à saúde de grupos ou populações específicas, não apenas de negros e negras. Historicamente, os significados sociais, as crenças e atitudes sobre os grupos raciais, especialmente o negro, têm sido traduzidos em políticas que limitam oportunidades e expectativa de vida.
A inserção social desqualificada e desvalorizada da população negra brasileira e a invisibilidade de suas necessidades específicas - nas ações e programas de promoção à saúde, atenção e prevenção de agravos – adicionados ao estado defensivo assumido por mulheres e homens negros no dia-a-dia (necessidade de integrar-se e, ao mesmo tempo, de defender-se dos efeitos nocivos da discriminação e do preconceito), podem provocar comportamentos inadequados, doenças psíquicas e psicossociais, além das doenças físicas.
Em todas os cantos do mundo a eficácia do cuidado em saúde varia de acordo com as condições sócioeconômicas (e seus efeitos) do sujeito – o lugar onde ele vive, a qualidade dos equipamentos sociais aos quais tem acesso, a sensibilidade, humanização e o compromisso da equipe de profissionais pelas quais ele(a) é atendido(a). Em decorrência dessas premissas, o registro e a análise das desigualdades e iniqüidades raciais em saúde só devem ser feitos por pessoas sensíveis e aptas a compreenderem os diferentes sentidos e significados atribuídos às relações entre negros e não negros, entre homens e mulheres, entre jovens e idosos.
A existência do quesito “cor” nos documentos oficiais é o primeiro passo para a redução das desigualdades. O contingente de mulheres negras é ignorado pelo sistema de saúde na sua especificidade (em conseqüência do mito da democracia racial presente em toda a população). Mas a informação é indispensável para que possam ser avaliadas as condições de saúde da mulher no Brasil.
É necessário também o treinamento dos profissionais de saúde sobre a importância dos dados e, mais efetivamente, treinamento e sensibilização referente à raça, cor e etnia.
Aqueles que precisam de cuidados buscam um esquema de atendimento que:
1) Considere suas necessidades em saúde;
2) Seja conveniente ao seu perfil sócio-econômico;
3) Leve em consideração sua posição na hierarquia social e de gênero, dentro e fora da unidade familiar, e também suas crenças, seus valores e expectativas.
A dificuldade enfrentada pelos cuidadores em contemplar esta diversidade e pluralidade compromete a eficiência e eficácia de suas ações. O racismo tem sido um fator determinante dos modos de nascer e morrer da população brasileira, com índices visivelmente piores para a população negra, afetando seu acesso a bens sociais como saneamento básico, alimentação balanceada, habitação social, traduzindo-se em maior mortalidade infantil e materna e menor esperança de vida.
Influencia, também, a progressão de doenças, grande parte delas evitáveis, mas que não tem recebido a devida atenção das políticas públicas. Cólera, dengue, sarampo, meningite meningocócica, esquistossomose, doença de Chagas, malária, diarréia, DST/HIV/AIDS, quando somos sabedores que quanto maior o grau de vulnerabilidade social de indivíduos e grupos, tanto maior sua vulnerabilidade a infecção e epidemias. Em relação à hipertensão arterial, diabetes tipo II e outras, a evolução mais grave ocorre entre a população negra. Assim, as propostas de saúde da população negra requerem ações emergenciais que busquem fundamentalmente romper com as desigualdades raciais e sociais no Brasil, o que implica atuar em diversas áreas, buscando: 1) ampliação da escolaridade dos negros brasileiros; 2) melhoria das condições habitacionais tanto no campo quanto na cidade; 3) acesso ao trabalho e a melhores níveis de remuneração; 4) diminuição dos índices de violência e da criminalidade no interior das comunidades negras e pobres; 5) ampliação do acesso à justiça, entre tantos outros em áreas igualmente críticas. Como, também, ações voltadas para políticas de saúde que visem a ampliação do acesso aos serviços de prevenção e tratamento, o que significa melhorias quantitativa e qualitativa no atendimento, incluindo, ainda, a redução dos índices de mortalidade infantil, morte violenta e morte materna, que permanecem com os mais altos índices entre os da raça negra.
Portanto, a formulação de uma Política Nacional de Saúde da População Negra buscaria romper um dos elos que garante a persistência dessa situação, reconhecendo, por um lado, a forma dinâmica da contribuição da sabedoria da medicina popular e das manifestações culturais e artísticas afro-brasileiras para a promoção do bem-estar físico, psíquico e social da população. Por intermédio de categorias culturais que permitem outras formas de perceber, expressar, avaliar e tratar doenças, terapeutas populares como mães-de-santo, benzedeiras, rezadeiras, raizeiras e parteiras, atendem a uma demanda expressiva de doentes que não têm acesso aos serviços públicos de saúde e, costumam ser, para muitos, talvez, a única forma terapêutica disponível.
A função de rezadeira é exercida, primordialmente, pelas mulheres. Ela precisa conhecer, não somente o repertório de rezas, cantos e fórmulas, como também, os detalhes posturais adequados, tanto os seus quanto os dos participantes, uma vez que lhe cabe instruí-los e zelar para que as técnicas rituais sejam corretamente mantidas e atualizadas na prática.
Para nascer, para morrer, para louvar os santos e antepassados, para selar promessas e desmanchá-las, há rezas e cantos específicos, configurando uma posição e uma função social especializada e de prestígio.
Outra posição relevante é a de benzedeira, que cura certos males com “rituais” de benzenção ou com plantas, ou que tira e põe o feitiço. A benzedeira pode ser especialista em apenas algumas dessas modalidades, ou em duas, ou mesmo em todas, dependendo de sua aptidão, treinamento e do poder do mestre de sua “força”. Também essa posição era restrita aos homens, mas a morte de grandes mestres, sem que transmitissem seus saberes a um sucessor, bem como as mudanças estruturais no processo de produção, levaram a uma fragmentação do conhecimento e ao desdobramento da especialidade.
Atualmente, a benzedeira competente benze dor de dente, quebranto, vento virado, espinhela caída. Há as benzedeiras que benzem roças para livrá-las das pragas, benzem feridas, bicheiras. De modo geral, a “benzenção” envolve reza ou recitação de fórmulas acompanhadas de gestos adequados com galhos igualmente apropriados ao
tipo do mal, devendo, portanto, ser jogado na água corrente (que tem o poder de “rodar” o mal) ou em direção ao sol poente (que tem o poder de carregar o mal), ou então queimado (pois o fogo tem o poder de consumir o mal).
A crença no feitiço é restrita, embora esteja escamoteada. Os mais velhos lamentam o declínio do poder dos especialistas e que a comunidade tenha perdido sua “força”, atualmente fragmentada.
A linguagem oral é responsável pela transmissão dos “casos” de doenças ocorridas e a intervenção “sábia” dessas mulheres no processo de cura. Algumas pesquisas mostram o trabalho, as “obrigações” diárias, impregnadas de caráter lúdico. Parece não haver, no cotidiano, a divisão de tempo entre trabalho e lazer.
O ritmo de vida é diferente, e aspectos como “manifestações culturais”, organização política e religiosidade não fazem muito sentido quando vistos de forma compartimentada. Às vezes, essa interligação de atividade aponta para características de uma sociedade em que os elementos da modernidade não estão presentes, outras vezes, aponta para as contradições visíveis em nossa sociedade. “Os terreiros de candomblé são equipamentos de saúde, pois muitas pessoas, ao sentir algo, recorrem em primeiro lugar aos terreiros. Assim, torna-se necessário que estejam preparados para passar informações adequadas e seguras, além de encaminhá-las ao serviço de saúde. Dessa forma eles se transformam em um espaço especial para o trabalho de conscientização sobre saúde”, afirma Anselmo Santos, no V Seminário Nacional de Candomblé, Saúde e Axé, realizado em Salvador. Formando uma estrutura que marca de forma significativa a cultura brasileira, mais de 30.000 terreiros espalhados pelo país constituem as diversas expressões das religiões de matrizes africanas no Brasil. Esses espaços sagrados possuem características próprias, de acordo com sua origem geográfica e interação com diferentes grupos étnicos.
Por meio de suas práticas rituais e de sua visão de mundo integradora, estas religiões possibilitam a inclusão de grande parcela da população, que encontra nos terreiros ou casa de santo a possibilidade de vivenciar relações humanas espirituais em um espaço de acolhimento e solidariedade.
A força advinda dos deuses e deusas para lidar com a saúde, seja do ponto de vista da promoção, prevenção, dos tratamentos ou curas, pode ser ilustrada pelo mito de Ossaim - guardião dos segredos das folhas. Muitas vezes, o acontecimento ou experiência, entendidos na lógica da medicina oficial, como distúrbios do corpo físico e/ou da mente, são, para as religiões de matrizes africanas, sinais ou manifestações de espiritualidade.
Os/as iniciadas crêem no poder da terapêutica dos terreiros exercida por pais e mães-de-santo diante de diversas situações de adoecimento ou desequilíbrio. Operando com riquíssima simbologia, esta terapêutica está contida nos rituais, nas folhas, nos banhos, na comida de santo e nos ebós (despachos).
Se por um lado é fundamental que o povo de santo conte com a medicina tradicional, por outro é essencial que a medicina oficial reconheça e considere a capacidade de intervenção, aconselhamento e acolhimento da medicina exercida nos terreiros.
1 Meteorologista, com graduação na Universidade Federal do Rio de Janeiro; professora de Biometeorologia da Universidade Federal de Alagoas; especialização em Ecologia e Ciências do Ambiente. Militante do Movimento Negro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS PARA ESTE TEXTO
ALVES, Amaro e Barbosa, Romero Bezerra. A Saúde da População Negra – realizações e perspectivas. Mimeo, 1998.
BARBOSA, Maria Inês da Silva. “É mulher, mas é negra: perfil da mortalidade do quarto de despejo”. Jornal da Rede. N°23, março de 2001.
BERG, C.J; ATRASH, H.K.et al. Pregnancy-Related mortality in the United States, 1987-1990. Obstetrics Gynecology. V.88, Nº 2, pp.161-167, August, 1996.
Conselho Nacional de Saúde. “Resolução nº 196/96 sobre ética em pesquisa com seres Humanos”.
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Organização Pan Americana da Saúde. Relatório sobre a Saúde no Mundo. Saúde Mental: nova concepção, nova esperança. OPAS/OMS, 2001, pp. 40-41.
“Portaria G/M nº 822 de 6 de junho de 2001”. Programa Nacional de Triagem Neonatal/PNTN.
ZAGO, Marco Antonio. “Problemas de Saúde das Populações Negras no Brasil. O papel da anemia falciforme e de outras doenças genéticas”. Texto apresentado na Mesa Redonda sobre Saúde da População Negra. Brasília, abril 1996.
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